quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Bucólica

–Mas senhor! Eu tenho família e só a terra é nosso sustento. O que posso fazer com tão pouco dinheiro?
E se ouviu um tapa ardido e alto, tão alto que os pássaros das arvores próximas fugiram.
Numa região não distante a cidade havia uma concentração de pequenos agricultores. Quarenta famílias que ocupavam as terras do estado. Quase todos trabalhavam com a horticultura e vendiam suas produções para atravessadores que lucravam absurdamente nas costas desses homens. Os moradores tinham consciência da situação, mas foram repelidos quando tentaram se organizar e vender diretamente os bens da terra. Estado, policia, nada existe para eles, ou melhor, existe, e são inimigos.
–Você acha que eu me importo? –Gritou o homem alto e forte que desferiu o tapa na cara do segundo – Você acha que alguém se importa? A empresa comprou essas terras, nem direito a isso vocês tem. Amanhã as seis as casas vão ser derrubadas, o dinheiro está aqui, e se quiserem ficar aí dentro, que morram!
Foi sendo entregue para cada família um valor de mil e quinhentos reais. Mães, pais e filhos choravam, ninguém tinha certeza da legitimidade do contrato de venda da terra, mas que fazer? Sabiam os moradores que o futuro só tinha a piorar, agora restava procurar outras terras perto da cidade e recomeçar o trabalho com a horticultura, ou tentar algo mais incerto ainda na cidade.
Saíram em cinco carros vinte pessoas bem vestidas e só ficaram os moradores do local, homens do campo esquecidos pela sociedade. O clima era pesado, os soluços chorosos se confundiam com o cantar dos pássaros que haviam voltado as arvores e o latido dos cachorros que, ingenuamente, seguiam os carros na maior das festas.
O projeto era magnífico, o slogam “Trazemos progresso” parecia um golpe de mestre. Um condomínio horizontal, com casas de no mínimo trezentos e cinquenta mil, mercado, clube, campo de golfe, lago artificial. Um pedaço do paraíso a disposição de quem pudesse pagar. O metro quadrado da terra, estimavam, valorizaria pouco mais de trezentos por cento.
Essa terra era usada pelos primeiros horticultores, que sempre lutaram para ter a posse legal dela, a mais de duas décadas. Entra e sai ano as promessas foram sempre as mesmas, levaram trabalhadores honestos na lábia até que enfim algo realmente lucrativo apareceu.
Nove da noite e o clima era de luto, as trevas poucas vezes mereceram tanto esse nome, chegaram três representantes de duas vilas rurais também irregulares oferecendo ajuda com transporte das cargas aos moradores, alguns iriam viver nessas outras vilas, alguns iriam se arriscar a tentar algo novo em outros terrenos desabitados em volta da cidade, quatro famílias tentariam a sorte na cidade. Em volta de uma fogueira a ultima reunião foi feita, a maior parte das crianças dormiam quase avulsas ao que se passava. Alguns habitantes que pensavam em resistir foram desmotivados pelo bom senso, ninguém se importava com eles, ao menos ninguém que tivesse realmente o poder de protegê-los, e em uma situação como essa não é preciso muito para levar um tiro na cabeça.
Alguns poucos já haviam vivido situação mais tensa, enfrentaram despejos violentos com policia de arma e lei em mãos. Ficaram a madrugada de vigília, pois sabiam que se aparecesse alguém desconhecido os riscos seriam enormes.
Só dormiam felizes os novinhos, que ainda não tiveram a obrigação de precocemente crescer, e eram eles os maiores temores das mães. Correu a madrugada lenta e aflita, sufocante. O cantar dos grilos junto com o das corujas era uma constante, as vezes um ou outro cão despertava. De certa forma correu bem a noite.
–Cinco da manhã. Chegaram.
Dessa vez não apenas cinco carros eram vários, também caminhões e tratores. Cinco da manhã e também já estavam de pé todos os moradores com suas sacolas, terminavam o pobre café matinal às pressas, intimidados alguns começaram a sair uma hora antes do curto prazo.
Uma placa começava a ser levantada, diria algo como “Futuro condomínio X”.
–Já vamos saindo. Espero que façam o pior proveito possível da nossa terra –Disse o homem que na tarde anterior levou um tapa na cara.
Assim que começaram a se recolher fez-se o som das máquinas, um trator ia em direção à primeira casa, mais uma vez os pássaros da proximidade voaram.
Das crianças aos velhos o sentimento era o mesmo, os mais fortes se desfazem da armadura e choravam, choravam como crianças recém nascida, e todos consolavam uns aos outros, e caminhavam, e caminhavam, e caminhavam, e caminhavam...


Bucólica 20/08/2010

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Herói tombado

Ao fundo fala a professorinha:
Blá, blá, blá, blá, o céu deveria ser verde e as pessoas terem rabos...
Inventando as palavras da professorinha, Mateos, afastado dos demais, rabiscava algo aparentemente sem sentido e divertia-se vendo seus colegas de classe todos fantasiados, de foca a extraterrestre. Seus olhos modificavam as cores e contornos da chamada vida real. Só a professorinha se mantinha intacta, sem necessidades de reparos, só a professorinha era perfeição.
Andando pelo chão roxo, com seu belo sorriso ela distribuía atenção, amor, a todos os robôs, hipopótamos e dragões da sala, em sua infinita bondade ela era cordial até mesmo com o chato do abajur quebrado.
Chegam às férias e é bom passar mais tempo com papai gigante, mamãe princesa e até mesmo com a maninha (que chora demais para um ovo, mas ainda assim é um amor).
Passeiam à casa de campo da tia Pardal, uma velha sem graça que faz bolos deliciosos. Na casa de campo há muito espaço, mas dificilmente Mateos fica longe dos olhos dos mais velhos, isso o desagrada, ele queria voar sem incômodos.
E vai ao parque, vê os primos, nada na piscina, nada longamente na piscina, cria histórias sobre o submundo das formigas... Ocupa a cabeça, pois são três meses e é triste a distância da professorinha. Pré um, dois e três se fizeram ao seu lado.
Enfim voltam as aulas, momento novo na vida de Mateos. Ele cogita mudar de nome, de aparência... Melhor não. Possível que a professorinha não o reconhecesse, então ele só mudou de leve sua cor.
A escolinha nova era feia, bem feia, alguns retoques seriam necessários, sem maiores problemas ele segue com a mamãe princesa para sua sala, como era heróico e bravo, dispensou sua tutora. Tirou da bolsa papel e lápis e começou a rabiscar algo aparentemente sem sentido.
Ouviu um barulho, olhou, entrou um horrível nariz, dois metros e meio de nariz! No mínimo! E disse o nariz:
-Bom dia a todos, meu nome é Alexandre, seu professor de matemática. Eu gostaria hoje que fizéssemos aqui uma roda para todos nos apresentarmos...
Como assim professor de matemática? Cadê a professorinha?
-Cadê a professorinha!?
O grito assustou alguns alunos, divertiu outros e embraveceu o professor.
-Onde você pensa que está menino? Qual o seu nome? Não me venha com problemas logo no primeiro dia – com tom menos rude – E que desenho é esse? Arvores não são azuis!

Mateos enfim entendeu tudo. A professorinha não estava na nova escola. O céu perdeu a cor verde, o professor não era um nariz falante, o ambiente protetor ruiu. Era isso que sua mãe dizia com “nosso menino está crescendo”, isso era crescer, era ser pássaro de asas cortada.
Estava certo, durante toda a vida ele seria podado.
Assim começou Mateos a ser educado.


Herói tombado 12/08/2010

domingo, 8 de agosto de 2010

Clichê

Durante um tempo eles se amaram, e trocaram um tipo diferente de aliança. Ela deu a Ele uma pulseira, Ele deu a Ela o coração, que bateria mesmo fora do peito enquanto vivesse o amor.
Numa tarde fria em meio a uma conversa dolorida Ela acabou com toda a fantasia. Ele retirou a pulseira e disse “Dá ao teu novo querer, não é justo que eu fique com o que pertence à terceira... Quanto ao coração... É sempre seu, faça o que quiser, mas não me devolva, esse sim te pertence."
E ficou lá parado como um robô. O coração cinza já não batia mais.


Clichê 04/08/2010

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Lispectoriana (ou Reflexão de fim de tarde)

...De qualquer modo fora uma tarde embandeirada.
E ao chegar a casa depois de seu compromisso deitou-se na cama e lá se esqueceu dos seus afazeres, deliciada com as lembranças da tarde e do belo animal. E tomou para si o desejo daquele amar diferente, encabulado, do amar o novo. Cogitou adquirir um exemplar do bixo e ter de novo, todos os dias, aquela sensação.
Abortou a idéia.
O novo deveria acontecer naturalmente e durar pouco, como um sonho, pois se não ainda sentiria vivo todo o cotidiano com o marido e os filhos, mas só restam os primeiros momentos, os de descoberta. Há amor, mas há amor obrigatório, forçado, a paixão morreu há muito tempo. E renasce com os mais estranhos acontecimentos.
Ela não sabe, mas esse pensamento a desmotivou durante toda a vida a buscar o novo por conta própria. Mas de qualquer modo fora uma tarde embandeirada.


Lispectoriana (ou Reflexão de fim de tarde) 04/08/2010