domingo, 17 de outubro de 2010

Amor

Não há lugar para mim na terra, meu amor, minha vida, meus sonhos e ilusões estão em algum outro lugar, talvez em algum planeta distante, quem sabe meu amor não more no asteróide B612... Ou quem sabe meu amor não tenha casa, se meu amor vaga pelo universo eu serei obrigado a vagar também, até encontrá-lo, e quando isso acontecer, será lindo, eu encontrarei minha alma gêmea, e serei metade homem e metade universo, e o Nada e o Vazio, essas duas entidades nos casará, terei em meu casamento a bênção de Ninguém, e serei feliz, minha alma gêmea e eu continuaremos andando pelo tudo, buscando o nada, sempre a caminho da estrela mais distante, meu amor me mostrará o universo, e dirá que sempre me procurou, assim como eu sempre o procurei, e teremos a eternidade para nos amar, pois a estrela mais distante está depois do infinito, talvez até depois do próprio universo, e pela primeira vez na vida mesmo com tanto preto, minha cor preferida será o branco, e o preto imutável do universo se tornará branco para nos fazer ainda mais felizes, e a felicidade será branco, e eu e meu amor seremos branco, e a vida deixará de ser vida para ser branco...


Amor 02/08/07

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

A mágica história de um longínquo povoado chamado Maná

No meio do nada, esquecida do mundo, existia uma vila. Maná, litorânea, cheirava a água salgada e peixe podre, suas areias eram tão inférteis que pouca coisa conseguia nascer na vila, algumas gramíneas e arbustos que quebraram a barreira da não-vida cresceram isoladas em distantes pontos e eram vistas com admiração pela população de lá, pois o verde mesmo que descorado, sem força, é algo extraordinariamente raro nesse local. O mais velho habitante de Maná, que não era o seu fundador, diz não se recordar de um único dia em que a nebulosidade o permitiu ver algo ao longe, ou que o deixou contemplar o sol. –Depois das ultimas casa vem à névoa, para cima só há névoa, nos pés existe areia e depois de poucos metros de mar volta à névoa. Fomos engolidos, essa é a verdade.
Os dias se arrastam em Maná, Julião há muito perdera também a noção do tempo, até onde se lembra está na vila a sete anos, mais uma eternidade que não foi contada –Não duvido que esteja aqui a mais de dois séculos – Nenhum outro habitante acredita nisso, mas todos sabem que não sabem das horas. Em Maná o calor é grande o tempo todo, não existe outono, inverno e principalmente primavera, o verão ainda não acabou.
A pesca é o meio de sobrevivência, mas os peixes são tão poucos que os habitantes já se acostumaram com um pouco de fome. Comer é terrível em Maná, só peixes fazem parte do cardápio, peixe, peixe, peixe, peixe, dariam a alma por um suculento bife, um tomate ou mesmo um jiló velho que não lembrasse aquele mar sem vida. Pouca coisa restava para fazer. Os idosos sem saúde eram alimentados quando sobrava alguma coisa das refeições, os preguiçosos simplesmente não comiam e as poucas prostitutas trocavam uma noite de sexo por meio pescado.
Erasmo era casado, se apaixonou por sua esposa no dia em que a viu ainda inconsciente, como todo novo habitante de Maná Julia chegou arrastada pela maré, vinda de algum lugar, assim como Erasmo, Julião ou qualquer outro. Tinha cabelos escuros, nariz fino, olhos castanhos claro, algo em torno de um metro e sessenta e quatro, corpo magro, pele macia embora as primeiras rugas começassem a aflorar, sua aparência dizia ter uns trinta e cinco anos. No dia em que ela chegou Erasmo se apaixonou e temeu que aquele corpo estivesse morto, levaram duas horas para reanimá-la. Embora ninguém nunca tenha morrido na vila, assim como chegam os habitantes afogados, chegam também corpos mortos, que são jogados de volta para o mar.
Por habilidade e ociosidade o velho Raul forjou em conchas todas as peças do dominó e passava os dias jogando (sempre ganhando) com os outros moradores, contando grandiosas mentiras como a velha história do dia em que conheceu um homem que amava os escorpiões e tomava feliz o veneno dos bichos para purificar o sangue, se aproximando de sua essência divina, ele tinha uma incubadora cheia de ovos de crianças venenosas e dizia que elas dominariam o mundo. Erasmo era o maior fã das histórias do ancião, mas o motivo maior que o levava as jogatinas era o orgulho, depois de tantas perdas jurou ganhar ao menos uma partida que fosse, Raul se aproveitando disso propôs uma aposta, se ganhasse ele diria sua estratégia, e uma vez por visita ao mar o pobre pescador acabava por perder meio peixe fétido.
Perto da casa das prostitutas, um cubículo de cinco por cinco com alguns colchões espalhados, a gritaria era constante, pelos urros dos homens sedentos, mas principalmente pela fome da Clotilde, uma gorda cozinheira que enlouquecera no vilarejo, gritava e andava, andava tanto pelas proximidades do “cabaré” que ganhou uma terceira perna para melhor se movimentar. Quanto às prostitutas, seis, viviam sempre peladas, e como a casa não tinha divisão alguma, enquanto uma trabalhava as outras assistiam. Elas sempre dividiam o pagamento, não se importando se alguma foi mais ou menos escolhida, sempre havia peixe para todas.
Gomez, de espírito inquieto, um dia juntou suas coisas em uma pequena sacola e saiu da vila, em aventura pela névoa por algumas horas ou alguns anos, difícil dizer, o certo é que um dia voltou com os olhos arregalados e dizendo que fez o caminho reto o tempo todo. Na segunda tentativa apareceu boiando pela água, afirmou mais uma vez ter feito o caminho reto, encontrou um grande mar, atreveu-se a trespassá-lo a nado, e foi atacado por um grande monstro de olhos amarelos. Depois de duas tentativas ele desistiu, o resto da população que já estava conformada afundou de vez as suas raízes.
–Julia. Estou indo conversar com o velho Raul.
–Conversar, levando peixe? Você vai perder novamente, ele é imbatível. Deixe disso querido, tanto trabalho para pescá-lo e você vai entregar para alimentar aquele desocupado?
–É uma questão de honra, meu amor. Além do mais, gosto das histórias dele.
–Um monte de lorotas.
E saiu confiante, rumo ao centro do vilarejo, onde deveria existir uma praça.
Avistando o centro Erasmo viu um tumulto, imediatamente imaginou ser mais um corpo vindo do mar, continuou calmo andando sem alarme. Mais perto do bolo humano alguém tirou de assalto o peixe de sua mão e jogou a frente.
–Que merda é essa? Como fazem isso comigo?
–Fique quieto Erasmo, eles disseram ter fome e não sabemos do que são capazes. Se quiser tentar conversar, só o Carlos está disposto, mas não quer ir sozinho.
Erasmo abriu espaço em meio às pessoas, afinal, o que são “eles”? Andando um pouco viu Carlos relutante e um grupo de sete esqueletos alados, todos de ouro e com belos olhos roxos.
–Carlos, que inferno é eles, me disseram que estão com fome.
–Chegaram do céu a pouco, pousaram aqui e esperam pacientemente pelo representante do vilarejo, dizem ter fome e não querem nada de graça, propõem trocas.
Médico da cidade, freqüentador assíduo do cabaré, estimado por todos, Carlos goza de grande prestigio, sabe das angustias de qualquer habitante. Nunca cobra por consultas e por isso ganha sempre os melhores peixes.
–Nunca tivemos um representante, chamamos Julião, mas o coitado se borrou ao ver esses seres magníficos, quer ir comigo?
–Vamos, espero que tudo dê certo.
E andaram na direção dos esqueletos de ouro.
–São vocês os representantes do vilarejo? – Perguntou o maior dos seres, que parecia ser o líder do grupo.
–Pode se dizer que sim – Disse Carlos –Exponha seus problemas.
–Como dito antes, temos fome. Estamos voando a muito e achamos esse lugar como que por milagre, então viemos pedir a vocês que nos conceda as delicias de seus mares, podemos trocar, trouxemos algumas coisas que talvez possam ser úteis a sua gente.
–De quanto peixe precisam? Querem que pesquemos para vocês? – Foi a vez de Erasmo se manifestar –Pois peixe é tudo o que temos a oferecer, infelizmente nossa terra não é fértil.
–Precisamos do suficiente para matar a nossa fome, nem mais nem menos. Não queremos importunar, pescaremos nós mesmos.
–Consentimos. Peguem os peixes, mas antes mostrem o que tem a nos oferecer.
O líder arrancou o dedo médio, que cresceu e cresceu, e ofereceu a Carlos e Erasmo uma quantidade enorme de ouro puro. Mas o que iriam fazer os habitantes de Maná com ouro? Perguntaram se havia outra coisa a ser oferecida. O membro diminuiu até voltar ao tamanho natural, a caveira colocou ele no lugar. Tirou da sacola que carregava duas caixas ornamentadas com muitos cristais, abriu a primeira, vazia, quando abriu a segunda um arco-íris se formou, começando em uma caixa e acabando em outra,quanto mais eram afastadas as caixas maior ficava o semi circulo. Formaram uma conferencia. Muito bonito, mas talvez houvesse algo de mais útil. Refutado a anterior as caveiras choraram, as lágrimas perfumadas fizeram com que Maná não cheirasse a peixe podre. Nova conferencia e nova negação. O esqueleto desembainhou a espada, apontou para o nada e cortou o ar, uma fenda foi aberta e sangue escorreu no chão rumo ao mar deixando a água vermelha. Dessa vez não houve reunião alguma, um mar de sangue era absurdo, em pouco tempo o liquido do ar estancou e sumiu.
–Percebi enfim que nossos gostos são diferentes, então proponha algo que para vocês deve ser bom e para nós é inútil – Disse a caveira, tirando do mesmo saco em que havia guardado as duas caixas, um punhado de sementes –Você, homem, disse que o chão é infértil, pois bem, essas sementes germinam em qualquer lugar, dão grandes frutos doces, não comemos nada doce.
Desta vez a reunião de Carlos e Erasmo com o resto da vila foi mais duradoura. Alguns poucos ainda insistiam no arco-íris ou no perfume, porém a fome foi maior, a expectativa de que as plantas realmente germinassem era sedutora.
–Queremos as sementes
–Façam então bom proveito, agradeço a paciência que tiveram comigo e com meus irmãos. Vamos pescar agora, logo em seguida sairemos de seu território.
Bateram as asas de ossos e foram na direção do azul, lá ficaram pegando peixes com uma habilidade tão grande que fez muitos da vila desejar um par daqueles dourados membros voadores. Carlos voltou com o saco com sementes comemorando e discutindo onde seriam plantadas. Erasmo parado contemplava a estranha pesca, e mais uma vez teve a incerteza se lá esteve observando a movimentação esquelética daquele estranho povo por algumas horas ou por alguns anos. Quando se virou para ir embora algo refletiu em seu rosto, voltou para averiguar o que era e percebeu-se em frente a um olho roxo, com certeza caída de qualquer das sete criaturas. O estranho objeto ficaria em seus cuidados até o dia em que voltassem, pois não estavam mais nas proximidades, não estavam mais em lugar algum.
Na volta para sua casa se surpreendeu. Toda a população de Maná de cara triste e as arvores já com uns trinta centímetros.
–Como você consegue ficar tanto tempo parado? Ah, malditas caveiras, levaram embora todos os nossos peixes – Lamentava Julião com a mais profunda delosalação até então vista em Maná –Eles de fato cumpriram com o acordo, as arvores estão crescendo, mesmo nesta terra de bosta que é a nossa, mas temos fome e elas ainda estão pequenas, parece fazer séculos que não me alimento.
–Acabaram os peixes?
–Em que mundo você vive, Erasmo?
Julião saiu amaldiçoando o mundo.
Chegando a casa percebeu Julia na cama, com cara de desgosto, as mãos na barriga denunciavam a imensa fome que sentia.
–Por que demorou tanto, meu amor? Estava tentando arrumar algo para nós? Você é tão bom, Erasmo, ainda procurando peixes. Mas venha aqui, deite-se na cama comigo, que agora eu quero você, talvez até distraímos nossa fome.
E se amaram longamente na cama, Julia com tanta fome, tanta vontade, que no momento do gozo lhe mordeu a nuca tirando sangue. Diminuíram as movimentações, cessaram as caricias, restou apenas um sorriso de satisfação, no rosto a certeza do dever bem cumprido.
–De onde vem esse cheiro? – E olhando para o lado percebeu o olho roxo que chorava, talvez pela emoção da cena vista, talvez pela tristeza de estar longe do corpo. Ela pegou o olho na mão e se deliciou, era lindo poder disfarçar o cheiro de peixe podre, ainda mais agora, que nem peixe havia –Amor, que presente lindo você trouxe para mim, agora vou estar perfumada onde quer que eu vá – Pegou agulha e linha, trespassou o globo que lacrimejou ainda mais e fez dele um colar.
Observando seu novo presente percebeu que se cutucado ele voltava a chorar. Agora Julia era a mais ilustre cidadã de Maná. A casa dos dois passou a ser freqüentada por todos os que queriam fugir um pouco do horrível cheiro da vila. Raul ia todo o dia a casa com o pretexto de jogar dominó com Erasmo. Carlos passou a se preocupar em demasia com a saúde do casal. Até as seis prostitutas saiam do cabaré, nuas, oferecer seus serviços aos dois em troca do cheiro bom.

(...)

Disso parece ter passado algum tempo, difícil precisar, o certo é que a população não se agüentava de fome e as primeiras frutas começavam a se formar, embora minúsculas, e talvez ainda azedas pela prematuridade, já eram visíveis. As arvores estavam com, em média, cinco metros e boa sombra, algumas pessoas esperavam pacientemente, imóveis de baixo dos frutos, que estivessem bons para o consumo, primeiro para serem os primeiros a comer e depois para que ninguém estragasse o alimento. A expectativa era tão grande para os guardas que, como hipnotizados, amenizavam a própria fome.
Nisso, espaçados, já tinham chego mais quatro habitantes, duas lindas irmãs, um velho acinzentado e Laica, a cachorra.
Quando Laica chegou logo se fez uma multidão em volta dela, nunca havia aparecido um animal antes. Algumas pessoas pensavam em comer sua carne, mas Caramelo foi reanimada. Julião, na autoridade de mais velho membro de Maná nomeou-a com o que achou conveniente, Caramelo pela cor, mas suas vistas cansadas não perceberam que o forte e viril Caramelo era na verdade uma doce fêmea. Passou a andar feliz pelas ruas, sempre brincando com as pessoas. Certa vez, no colo de uma moça jovem esta disse –Tão bonita a Caramelo, bem que poderia estar prenha e dar mais cachorrinhos para animar esse lugar horrível – Uma das gêmeas retrucou –Engravidar? De quem? De quê? E parem com isso de Caramelo! Caramelo é nome de cão, não de cachorra. Caramelo tem é cara de Laica, cachorra estrela de cinema – E assim ficou. Sobrando apenas uma crise de identidade no pobre animal.
Como em todos, a fome bateu também em Laica, que se tornou agressiva, corria atrás de todos, porém adorava principalmente a suculenta e gorda carne louca de Clotilde, que agora não tinha mais paz. Tentou certa vez comer a cachorra, mas foi quase comida, pegou medo e fugiu. Agora sempre foge, e de tão longo tempo sem dormir, nasceu nela uma segunda e louca cabeça, enquanto uma corria e gritava, a outra dormia todo o sono acumulado.

(...)

E ficaram prontas as frutas, a cidade se reuniu em festa, todos sentados no chão do centro da cidade, onde deveria existir uma praça, foram contados os habitantes e as frutas, foram excluídas Clotilde e Laica. Três frutas e meia para cada morador, o mais importante era, de modo algum engolir qualquer semente, elas sim, em Maná, valiam mais que qualquer metal precioso. Todos comeram tão rápido que ninguém soube dizer qual era o sabor da fruta dourada, nem ao menos se era boa ou ruim. Só depois da refeição que abriram as comemorações, os discursos. Julião falava com a animação de um prefeito, do privilégio de ser o primeiro-habitante-quase-fundador-de-Maná, esta terra santa. E falava um, dois, cantavam e dançavam, batiam palmas, explodiam raios em cabeças.
O ultimo acontecimento veio de longe. BUM e BUM. Ninguém entendeu o ocorrido, pararam assustados e ainda sorridentes, olharam para o lado do estrondo e dois corpos voaram em direção a multidão. Ainda fumegando Clotilde caiu no chão, carbonizada. Laica bateu com força na cabeça de um homem, foi tão violento o impacto que a cachorra se partiu em duas e o homem sangrando desmaiou. Em volta da multidão o cheiro de perfume se confundia com o de fumaça, rápido sete fagulhas brilhantes ganharam corpo.
–Malditos, tínhamos um acordo e vocês nos roubaram! – Disse uma das caveiras brilhando tão intensamente que foi difícil perceber que lhe faltava um olho roxo.
–Acalme-se meu irmão, eles vão ter o que merecem – Disse a caveira alada maior, dessa vez vestida de uma negra armadura cheia de pontas que gotejavam veneno e feriam de sangue o solo –Um acordo digno tínhamos com os habitantes desse lugar, mas vocês – E apontou para Carlos e Erasmo –Tomaram o olho do meu irmão. Torturaram-no trespassando ferros e lhe danificando a vista.
E de fato embora ainda exalasse um bom cheiro o olho já estava todo murcho.
Erasmo correu e pegou o olho do colar de Julia, tirou a linha que o atravessava e entregou a caveira peçonhenta – Quando vocês saíram o olho estava no chão. Guardei-o durante muito tempo, mas como vocês não voltavam acabamos por feri-lo para tirar o cheiro, sem saber que isso feria a vocês também.
–Muito tempo? Você acha que se passou muito tempo? – Disse a caveira chefe brilhando –E isso te daria o direito de torturar, cegar um de nós? – O brilho agora era tão intenso que as pessoas da vila se viraram para não queimarem a vista.
–Tudo bem, me castiguem, mas deixem o resto em paz. Eles não têm nada a ver com tudo isso.
–Não! Meu irmão quer a torturadora – E apontou para Julia.
Não houve tempo de reação, quando Erasmo abriu a boca foi jogado no mar.
Segue aqui passagens odiosas de todo o acontecimento. Só consigo dizer que arrancaram a ossos o olho direito de Julia, os habitantes de Maná não se aguentaram com os outros acontecimentos, aos poucos desmaiaram de ver tamanho horror, tão cedo que o mais resistente homem não viu um décimo do que se passou. Muitos nunca mais dormiram. Pela primeira vez choveu no lugar, chuva salgada, eram as lágrimas do mundo. Quando Erasmo voltou a praia, com litros de água no pulmão, assistiu sua esposa cinza, com veias verdes saltadas, bocas o olhos bem abertos, mãos torcidas na mais forte expressão de dor já vista em qualquer mundo, em qualquer tempo. Ninguem nunca foi capaz de relatar as atrocidades vistas.
Enquanto Erasmo nadava sem rumo à procura de Maná, à procura de Julia, mais coisas aconteceram. As caveiras destruíram todas as casas, queimaram as arvores e as sementes, exigiram contribuições de sangue a todos os moradores. De tempo em tempo cortavam os pulsos de alguns e tomavam seu sangue, os mais fracos também tombaram, os corpos eram jogados em um canto qualquer. Até que saciaram, acalmaram a raiva e foram embora.
Com a chegada de Erasmo Veio junto à segunda chuva em Maná. Chuva que nunca mais cessou. Usaram pedaços de madeiras das casas e fizeram buracos na areia, usaram o sangue dos vivos para escrever na madeira, os mortos daquele lugar morto mereciam uma ultima homenagem.
Na lapide de Laica havia algo como “Uma boa e faminta amiga”, ao lado dela, Clotilde, “Uma faminta” outra mulher que em vida tinha ares de religiosa e pereceu nos ossos das caveiras “Junta de seu deus”, um morador com sonhos de escritor “Nem parece que o acontecido aconteceu...”, um lenhador “Voltamos sempre às raízes”, e Julia “A mais perfumada flor”.

(...)

Não restou uma casa, um peixe, uma fruta ou uma alegria em Maná. A chuva caía eternamente e de tempos em tempos os mortos se levantavam. Isso não resolvia, mas acalmava a dor de todos. Julia, cinza, perfumava o pequeno mundinho e consolava com palavras de carinho o marido. Laica latia e brincava com as gêmeas e mais todos que gostavam de animais. Clotilde, lúcida, abraçava os cidadãos como uma mãe de coração enorme faz com todos os filhos, a religiosa rezava pelo bem de todos, uma luz quente quase era capaz de ser sentida, o lenhador caminhava e por onde passava arvores fictícias nasciam da areia, o escrito, parado num canto, avulso de tudo chorava e escrevia os mais belos contos. Depois eles voltavam a descansar. Toda a população sentava no centro da cidade, onde nunca existiu uma praça, e soluçavam de dor. Eternamente. Os papeis do escritor eram destruídos pela chuva.


A mágica história de um longínquo povoado chamado Maná setembro/outubro 2010